terça-feira, 1 de abril de 2008

último romance

Era ali, no final da Rua da Luz, sob o número 98, que morava o senhor Baltazar de Castro. Sua casa era um antigo sobrado com alpendre lateral, cuja frente ostentava um belo e bem cuidado jardim com suas begônias, avencas e gardênias; tarefa que cabia ao proprietário executar, e que o mesmo fazia com esmero e prazer. Era comum passar à frente de sua casa todas as manhãs e vê-lo na sua terapia. Seu Bal, como era conhecido no bairro inteiro, morava sozinho há quase vinte anos, desde que enviuvou, ou, como ele mesmo falava, “quando metade do meu sol se pôs”. Dona Henriqueta partiu quando o marido tinha sessenta anos, e enquanto juntos, sempre foram exemplo de companheirismo e amor para todos. Era muito comum encontrá-los de mãos dadas a passear nas ruas daquela pacata cidade, ou na missa dominical. Ao divertimento guardavam o sábado à noite, onde assistiam a algum filme no cinema Apolo. Ele em seu porte atlético de nadador costumaz, e ela em sua delicadeza de moça bem criada, eram admirados ao passar. Não tiveram filhos, e viveram juntos quarenta anos, até que o coração dela parou. Abatido, seu Bal ficou meses recluso, era visto raras vezes no jardim, num desleixo só. Barba por fazer, cabelos por cortar. Segundo um seu criado, estava padecendo de uma febre quartã.

Um belo dia, numa quarta-feira de uma primavera tardia, já passando das sete da noite, eis que surge no portão seu Bal. Devidamente trajado num conjunto de terno branco em linho, gravata da mesma cor, um belo chapéu de Panamá, um cravo na lapela, um lenço todo embebido em água de colônia; cruzou o portão numa mudez gritante, e seguiu a rua imune a olhares e cumprimentos. Incrédulos, os vizinhos o viram dobrar à direita na esquina da rua da Luz com a Visconde Negro, era o baixo meretrício. Lá chegando, foi bem recebido pela dona da casa, que lhe pôs numa mesa confortável e lhe trouxe umas meninas. Seu Bal tomou um gym puro, escolheu a mais novinha e subiu para o quarto. A partir daquele dia, pelos próximos vinte anos, deu-se o ritual das quartas-feiras à noite. O bairro se acostumou àquela cena, e sua passagem no dia tal, já virara até referencial de dia e hora, “hoje é terça ou quarta?”, perguntava-se, “hoje é quarta, seu Bal está vindo ali”, retrucava-se. E sempre o mesmo traje, a mesma elegância, a mesma mudez.

E assim foi, que numa quarta, justo dia 8 de novembro, quando completavam-se vinte anos do passamento de dona Henriqueta; seu Bal cruzou o portão. Seguiu o trajeto em sua segurança inquebrantável, como um autômato, dobrou na Visconde Negro, entrou no lupanar, tomou seu gym, pegou pelo braço a menina mais nova, e seguiu para a alcova mesma, desde a primeira vez. Despiu-se no escuro como sempre fizera, e no mesmo breu, fez ali o seu amor de plástico, e gozou como nunca havia, e virou-se pro lado, e ainda ofegante cochilou, e do cochilo refazedor enveredou pelo sono pesado, e do sono ao sonho foi um pulo, e lá, no portão da casa do sonho, estava Henriqueta, de mãos estendidas a sorrir, e ele sorriu, e em passos tétricos foi até ela, se abraçaram, e depois de um longo beijo seguiram pela rua da Luz e nunca mais foram vistos.


texto: m
foto: Paulo Cezar

Um comentário:

~Menina ~Singular disse...

nossa que lindo!

"...e depois de um longo beijo seguiram pela rua da Luz e nunca mais foram vistos."

(L)