domingo, 23 de março de 2008

Revisão do tempo

Veja você que por aqui setembro já invadiu a sala, sorrateiro, impávido, alheio aos meus dissabores, e às noites em que me arrasto sob a luz dos que não sonham. Independente do lado que se olha da janela; tenho visto dias gêmeos, e os raros que fogem disso, diferem por intensidade maior de sentimentos menores. E no tatear de silêncios que sua falta me impõe, esqueço até que nada pára em nome do que fomos, nada.

Lá fora o chão de terra ainda sorve umas chuvas de agosto, a preparar secretamente o que vamos ver no explodir dos girassóis; sopra na velha palmeira que sombreava nossas tardes o mesmo velho vento que você dizia vir de Soweto; a roseira plantada a quatro mãos já cumpriu o seu primeiro outono de ausências; os vizinhos me olham como se não me vissem, e até os pardais, estes, não mais.

Ontem adormeci mirando o calendário, após me dar conta das luas que vieram sem você, e foram tantas. Ontem sonhei com a sua volta. Vinha feito sol e inundava o meu jardim aos primeiros ares da primavera, trazia marfins na boca, e a mesma alegria nos olhos de jade. Acordei sorrindo esta manhã, e ao perceber que era sonho; mero capítulo do meu romance sem leitores, saltei da cama para a vida.

Rasguei os mapas, nosso caderno de sonhos. Não fazia sentido prender vôos virgens na solidão de uma gaveta insólita. Também queimei as cartas, nosso rosário de mentiras, mas antes, reli por vezes o pergaminho dos enganos. E às canções que me ensinaste não darei mais ouvido. Apesar das dores, vou apagar as tatuagens assim, à unha. E com mais força, a cada instante que perceber que nada pára em nome do que fomos, nada; veja você...
Texto: m
foto: Raramago

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