terça-feira, 28 de outubro de 2008

lume era


era um amor tão bonito,
até parecia valer a pena,
aquele amor tatuado,
suado amor, de dor amena.
aquele amor infinito,
pleno de planos,
ausente de enganos.
um verso valsificado,
que já foi Tango,
Foxtrot, e virou Fado.
nessa viagem,
aquele amor longa metragem
teve vida curta,
um mero meteoro
pela noite apressado,
e tudo dele que restou:
esse desenho desanimado.

m.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

come on

conserta essa asa, meu bem,
vê se passa aqui em casa,
vem, vem ver como dorme
essa minha epiderme,
traz a tua, alisa minha,
deleite do meu update,
faz do meu coração
underground um degrau,
faz uma canção, um recital,
que tal um blues, um bolero,
morrer de você é tudo
aquilo o que eu mais quero.
esquece a gravidade da lei,
flutua nua em pêlo meu jardim,
desbrava meu novo planeta,
antes que essa lua cometa
aquele crime de lesa-alma:
um arakiri dentro de mim.
vem, meu bem, sem calma,
vem deitar na minha lama
a sós com os meus lençóis,
vem, que eu faço de você
a mais bela tela de Monet,
ou quem sabe um Kandinski
concretamente abstrato,
ou um hai-kai de Leminski
do nosso tato imediato.
conserta essa asa e vem,
vê se passa aqui em casa,
essa noite nem vou sair,
vem desligar da tomada
o eco dessa tua risada
que não me deixa dormir.


m.
foto: Júlio Riccó

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Os Três Mal-Amados

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

será que ela vai conseguir esse feito!? de fazer o amor comer... "pois que coma tudo, se o caso for!"
As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.
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foto: Antonio Martins

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Se

E se você quiser
Posso dar um jeito de ser
O que você quiser
Para lhe fazer feliz
E assim, se frio fizer
Em sol me viro
Se você quiser...
E no calor serei a neve
E se chover, deixo lhe molhar
Se você quiser...
E se doer, faço passar
Se não passar, passo pra mim
Se você quiser...
E se chorar, serei seu lenço
E se cair, lhe dou a mão
Se você quiser...
E se sentir medo, eu protejo
E guardo até segredo
Se você quiser...
E se esquecer, eu lembro
E não me permito falhar
Se você quiser...
Uma música
Uma noite
Uma piada
Um sorvete
Um ombro
Um sorriso
Um beijo
Um abraço
Posso dar um jeito de ser
O que você quiser
Para te fazer feliz


mister m.
foto: Hugo

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Apagar-me

Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.

Paulo Leminsk
Foto: Lena Queiroz


segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Roda Viva - trechos

[...] Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu [...]

[...] A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá [...]

[...] A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá [...]

[...] A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou [...]

[...] O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou [...]

[...] Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração [...]

Composição: Chico Buarque
foto: Lenice Barbosa

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

[...]

"A felicidade aparece para aqueles que choram. Para aqueles que se machucam. Para aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas".

Clarice Lispector
foto: Salvador Medina

Valeu Mandoca!!!

domingo, 5 de outubro de 2008

Restos de Carnaval

[...] E quando o carnaval ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu. [...]

trecho de: Restos de Carnaval - Clarice Lispector
foto: João M. Cosme Inês

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

A dor do não vivido

Definitivo, como tudo o que é simples. Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Por que sofremos por amor?

O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz.

Sofremos por quê?

Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados pela eternidade.
Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada. Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Como aliviar a dor do que não foi vivido?

A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável; o sofrimento é opcional.


Carlos Drummond de Andrade
foto: Pedro Moreira

motim

eu quando quero
não espero,
me desespero
quando quero,
não pondero,
eu incendeio,
eu incinero,
repito Roma,
um novo Nero,
eu quando quero
não modero,
me destempero
quando quero,
saio do sério,
eu desagrego,
eu exagero,
rasgo a Ilíada,
insulto Homero,
quando quero
eu me espalho,
eu reverbero,
[noves fora zero]
eu banco o Che,
revoluciono
quando quero
você.

mister m
foto: francisco garret