quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Todo carnaval tem seu fim

Era terça-feira, e o carnaval já apontava seu rumo para aquela hora ingrata, naquele mar onde todas as alegrias deságuam. A confusão sonora era inevitável àquela altura na Rua do Bom Jesus, com o desfile dos blocos, o chacoalhar característico dos caboclos de lanças do Maracatu, as vozes dispersas que se cruzavam ouvidos a fora. O cheiro de suor e álcool inebriante no ar, apenas prolongava a vontade de não mais sair dali. Sentado à beira da calçada, num breve momento de descanso, ele apoiava a cabeça entre os joelhos como se nela morasse todo o peso do mundo. Sacou da peruca black power, passou a mão na cabeça que ainda estava quente, mesmo com o sol já se havendo retirado do palco, e no céu, as estrelas mais ávidas já assistirem sorridentes aos últimos momentos da festa. Ficou ali uns cinco minutos. Alheio a tudo em sua volta.


Lentamente, como quem acorda, voltou à cena que os olhos estranharam, muito mais por culpa da bebida, esta que logo tratou de tatear à sua esquerda na calçada mesma em que estava. Sorveu um gole rico do líquido que trazia ali desde cedo. Com a costa da mão direita enxugou o pouco que escorreu da boca. Tentou levantar, em vão, voltou à posição inicial. Deu-se então um daqueles intervalos entre um bloco e outro, no que diminuiu o fluxo de foliões, e facilitou uma visão mais ampla do que havia por perto. Foi aí que ele olhou numa linha reta à sua frente, exatamente na outra calçada, sentada na mesma posição, uma mulher normal. Olhou para ela mais pela coincidência da posição que por outro motivo, ou atrativo. Achou engraçado que naquela confusão de gente, duas pessoas houvessem tido a mesma vontade de sentar, em posições e momentos idênticos, e, milimetricamente colocadas frente a frente. E não apenas isso, posto que guardavam suas bebidas no mesmo lado na calçada. Num estalo, ambos deram conta do fato, e um inevitável sorriso simultâneo brotou nos lábios separados pelos paralelepípedos da Rua do Bom Jesus.

Levantaram-se ao mesmo tempo. Sorrindo deram o primeiro passo em direção ao outro, e mal perceberam uma troça relâmpago que vinha da Praça do Arsenal, e não deixou que os dois espelhos se tocassem. Num minuto foram levados contra vontade para lados opostos de braços esticados como se dessem sinal de onde estavam, e seguiram tragados pela multidão, olhando à toa de ponta de pé na suposta direção onde estaria o outro. O turbilhão seguiu a rua como um mar de alegria e sons. Os espelhos foram juntos desaguar no Marco Zero. Ele àquela altura, ansioso. Ela desesperada. Na multidão dispersa no amplo espaço do local, eles se transformaram em olhos, buscando um ao outro, e já pensando que o jogo de gestos idênticos era coisa do destino.

Mais de uma hora depois, ninguém havia se reencontrado, e tristes, cada um sentou no muro do cais, onde outros foliões também estavam. E vendo o mar ficaram, cada um com seu pensar, com seu “por que?” ecoando na cabeça. Porém, folião bom não descansa, e os que pousavam no cais alçaram vôo, e deixaram os tristes a pensar na vida. Foi aí que ele, no afã de tatear mais um trago, olhou à sua esquerda e deu com ela girando a cabeça à direita no mesmo instante. Sorriram juntos. Levantaram-se novamente, e livres dos empecilhos ficaram enfim mais próximos. E ela viu sua barba rala com defeitos, e ele viu que seus olhos eram verdes, e que ela tinha sotaque do sul. Ela aceitou seu convite para voltar à folia, e ele pegou na sua mão fria e trêmula. Seguiram como se fossem antigos namorados. Pularam juntos o resto daquela noite mágica. Beijaram-se e beberam da mesma bebida. E quando a última estrela, triste, ensaiava a despedida ante os primeiros raios da quarta-feira, eles voltaram ao ponto onde tudo começou, deram um último e longo beijo, e cada um seguiu seu caminho na sua calçada.

m.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Cântico

Não, tu não és um sonho, és a existência
Tens carne, tens fadiga e tens pudor
No calmo peito teu. Tu és a estrela
Sem nome, és a namorada, és a cantiga
Do amor, és luz, és lírio, namorada!
Tu és todo o esplendor, o último claustro
Da elegia sem fim, anjo! mendiga
Do triste verso meu. Ah, fosses nunca
Minha, fosses a idéia, o sentimento
Em mim, fosses a aurora, o céu da aurora
Ausente, amiga, eu não te perderia!
Amada! onde te deixas, onde vagas
Entre as vagas flores? e por que dormes
Entre os vagos rumores do mar?
Tu Primeira, última, trágica, esquecida
De mim! És linda, és alta! és sorridente
És como o verde do trigal maduro
Teus olhos têm a cor do firmamento
Céu castanho da tarde - são teus olhos!
Teu passo arrasta a doce poesia
Do amor! prende o poema em forma e cor
No espaço; para o astro do poente
És o levante, és o Sol! eu sou o gira
O gira, o girassol. És a soberba
Também, a jovem rosa purpurina
És rápida também, como a andorinha!
Doçura! lisa e murmurante... a água
Que corre no chão morno da montanha
És tu; tens muitas emoções; o pássaro
Do trópico inventou teu meigo nome
Duas vezes, de súbito encantado!
Dona do meu amor! sede constante
Do meu corpo de homem! melodia
Da minha poesia extraordinária!
Por que me arrastas? Por que me fascinas?
Por que me ensinas a morrer? teu sonho
Me leva o verso à sombra e à claridade.
Sou teu irmão, és minha irmã; padeço
De ti, sou teu cantor humilde e terno
Teu silêncio, teu trêmulo sossego
Triste, onde se arrastam nostalgias
Melancólicas, ah, tão melancólicas...
Amiga, entra de súbito, pergunta
Por mim, se eu continuo a amar-te; ri
Esse riso que é tosse de ternura
Carrega-me em teu seio, louca! sinto
A infância em teu amor! cresçamos juntos
Como se fora agora, e sempre; demos
Nomes graves às coisas impossíveis
Recriemos a mágica do sonho
Lânguida! ah, que o destino nada pode
Contra esse teu langor; és o penúltimo
Lirismo! encosta a tua face fresca
Sobre o meu peito nu, ouves? é cedo
Quanto mais tarde for, mais cedo! a calma
É o último suspiro da poesia
O mar é nosso, a rosa tem seu nome
E recende mais pura ao seu chamado.
Julieta! Carlota! Beatriz!
Oh, deixa-me brincar, que te amo tanto
Que se não brinco, choro, e desse pranto
Desse pranto sem dor, que é o único amigo
Das horas más em que não estás comigo


Vinícius de Moraes

foto: Sergio R. Moskato