sexta-feira, 27 de junho de 2008

A língua girava no céu da boca

A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único.
O sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu.
Os dois nos movíamos possuídos, trespassados, eleu. A posse não resultava de ação e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de aniquilamento. Soltos, fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós.

A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo, se restituíram à consciência. O sexo reintegrou-se. A vida repontou: a vida menor.

Extraído do livro "O amor natural", Editora Record – RJ, 1992, pág. 29.
por.: Carlos Drummond de Andrade
ilustração: Caco Xavier

domingo, 22 de junho de 2008

[...]




nunca quis ser freguês distinto
pedindo isso e aquilo
vinho tinto
vinho tinto
obrigado
hasta la vista

queria entrar
com os dois pés
no peito dos porteiros
dizendo pro espelho
- cala a boca
e pro relógio
abaixo os ponteiros



p.leminski
foto: @gonçalves

terça-feira, 17 de junho de 2008

Tempo de menino

Ainda me lembro que no tempo de menino
Achava lindo quando era São João
Numa palhoça, um sanfoneiro animado
Puxava o fole entoando uma canção

A molecada se juntava no terreiro
E, mesmo sem dinheiro não faltava diversão
Brincar de pega, de esconder, de cabra-cega
Pular fogueira, pau-de-sebo ou garrafão

Dançar quadrilha era tudo que eu queria
Mas era novo e não sabia dançar, não!
Então ficava observando, abestalhado
Atordoado com a beleza de um balão

Naquele tempo a meninada inocente
Ficava a gente admirado com o clarão
Que deslizando pelo céu piscava longe
Alimentando aquela doce ilusão

Quando a quadrilha terminava era de dia
Toda Maria encontrara seu João
Agora fico revirando o pensamento
Volto no tempo e não contenho a emoção.


poesia: Suelyton Melo
foto: Kiko Neto

domingo, 15 de junho de 2008

Hoje

Hoje, eu preciso de um impulso para o amanhã.
Uma notícia, uma visita, uma pessoa. Algo que me faça lembrar que estou vivo. Que me faça lembrar que existe o amanhã.
Hoje eu preciso sorrir. Ter motivos para estar feliz, dar uma boa gargalhada. Algo que me faça lembrar que existe felicidade.
Hoje eu preciso perceber. Ter noção do tempo e do espaço. Saber que não sou luz. Perceber que sou um corpo que sente e toca.
Hoje eu preciso de liberdade. Preciso sair de casa. Respirar um ar livre. Preciso saber que o mundo existe e maior que ele um grande espaço.
Hoje eu preciso descansar. Sentar e ver. Deitar e sonhar. Acalmar.
Hoje eu preciso pensar. Elaborar o próximo minuto, a próxima hora. Ter em mente como vai ser o depois.
Hoje eu preciso conseguir. Talvez perder. Mas uma única vez ser o vencedor. Ter glória e ser reconhecido.
Hoje eu preciso sonhar. Estar em um local psicodélico. Se sentir fora de mim. Fora daqui.
Hoje eu preciso de amor. Preciso ser amado. Preciso saber que nesse mundo grande e ao mesmo tempo pequeno existe uma pessoa que gosta de mim.
Hoje eu preciso e preciso mais do que nunca de você. Pois ao seu lado eu não preciso de um impulso, não preciso sorrir, não preciso perceber, não preciso estar livre, não preciso descansar, pensar, conseguir, sonhar.

Só preciso do amor.
Só preciso de você.
Somente você.
E nada mais...


[...] aiaiai cabecinha louca a minha [...]
foto: Deyvis Malta

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Retiro

Quando o mar, meu confidente,
Empresta o sal à brisa fresca da manhã.
Eu deixo passos fundos na areia branca

Quando a brisa, minha companheira,
Provoca o vai-e-vem das ondas.
Eu miro o sol que brilha sobre nós

Quando o sol, meu defensor,
Mergulha em nuvens para não me enrubescer.
Eu sinto o véu de água sob os pés

Quando a água, minha namorada,
Alisa a areia provocando espuma.
Eu logo mudo a trajetória evitando as ondas

Quando a areia, minha delatora,
Revela o novo rumo que tomei.
Eu busco segurança sobre as pedras

E, quando as pedras, meros figurantes,
Acatam os fortes golpes das ondas do mar.

Eu deito e fico contemplando as nuvens.
poesia: Suelyton Melo

domingo, 8 de junho de 2008

temporão

hoje
eu vou
mudar de ares

vou
colorir
os colares

hoje
eu vou
quebrar o clima

dar
um tapa
na solidão

hoje
é dia
de faxina

aqui no meu porão


poesia: mister m
foto: antonio costa

terça-feira, 3 de junho de 2008

curta esse curta

esse filme não tem replay,
só vai passar uma vez
na frente da sua janela.
corra enquanto é tempo,
cinzas na boca do vento,
esse filme não vai deixar.
ponha seu vestido francês,
faça um coque no cabelo,
que esse filme, para vê-lo,
é preciso tal elegância,
como naquele filme inglês,
que você viu certa vez
lá nos meados da infância.
corra enquanto é tempo,
cinzas na boca do vento,
esse filme não vai deixar.
ponha um cravo na lapela
dessa sua janela sem cor,
capriche naquele perfume,
que encanta até vagalume
com o doce do seu olor.
e assim, preste a atenção,
para não cometer engano,
naquela cena de emoção,
sou eu o ator principal,
que acena e diz
eu te amo.


poesia: mister m
foto: Pedro Monteiro