domingo, 30 de março de 2008

meio lua

Demorei dias para chegar aqui. Cheguei. Lápis e papel. Passa da meia-noite. Sobre a mesinha perto da janela pouso os cotovelos agora. De sono, sequer vestígio. Daqui dá para ver o céu, e confesso: uma lua, qualquer que fosse, cairia muito bem. Assim eu poria em ordem as palavras que batem umas nas outras aqui dentro. Parece até carnaval. Olinda no domingo, seu ruge-ruge. A lua me acalma. É tanto por dizer, tanto que sinto, e mais outro tanto que luto para não sentir. Em vão. Ando mentindo sorrisos, coisa que nunca fiz. Cadê a lua?... Há céus em que as nuvens não deixam. Ando tão inverno nesse outono, você nem sabe... Passa da meia-noite, mas da janela vejo a rua lotada de casais, uns que passam em entrelaços, uns que bailam valsas imaginárias, uns que se beijam. Todos felizes, e têm as nossas caras. Sonho. Acordo. E a lua?... Engraçado, mas, por mais distante que esteja, quando ela aparece é sempre tão perto. Ando assim, meio lua, quanto mais longe, mais perto. E é no silêncio das insônias, numa ou outra fumaça de cigarro, é que doer mais dói. No que me apresenta a fertilidade da imaginação, nas perguntas que me faço, e respondo: “onde?”, “como?” ela estaria agora... As dores, estas me trouxeram aqui. Cheguei. Lápis e papel. A meia-noite já é passado. Saudade o meu presente. Ao futuro deixo as incertezas, e as luas que pedi e não vieram, trocaria todas por você.

"para quem anda me fodendo sem penetração"
texto: m
foto: Hugo amador

sábado, 29 de março de 2008

tons de outono


tem dia
que não tem remédio

não importa o som
nem a cor do batom

nada sai inteiro
é tudo médio

tudo bom?
tudo tédio!


poesia: m
foto: Luna
e hoje é justamente um desses dias.

sexta-feira, 28 de março de 2008

como janeiros à beira-mar



Acordou mais cedo que de costume àquela manhã. A passos tétricos arrastou-se até a porta da casa mesma em que nascera. Sentiu ausente o arfar do peito que o fumo lhe imprimira nos últimos anos. Respirava lento e calmo, como já fora um dia, e lembrou-se o quanto fácil era ser jovem. O modo autômato como levantou-se fez com que não percebesse de imediato que as dores de velho haviam ficado mais um pouco no colchão àquela manhã. Pisou mais firme no chão. O pé direito cujos ossos foram feridos de guerra sequer deu sinal de dor, a lembrança dos dias em combate lhe doeu bem mais. Sorriu por dentro, como todo casmurro. Mais um passo para fora e já era jardim. Desceu o batente, e teve os olhos ofuscados pelo sol que aquele janeiro fazia. Coisa de se estranhar. Pensou. Janeiros à beira-mar são mais molhados. O pequeno jardim parecia lhe sorrir mais que o normal. Viu num beija-flor que ali fazia vida, algo mais que poesia; era algo na leveza, nada de que quisesse invejar. Mas acalentou no peito mudo o desejo de fazer o mesmo. Voar? Percorreu o terreno com facilidade, e agora observava a velha casa de frente, como quem chega. Foi aí que se deu conta de algo, e resmungou palavras soltas no afã de quebrar aquele silêncio. Aquilo só podia ser coisa de domingo. Vizinhos na missa. Crianças na cama. Pensou.Sentiu-se mais leve, arriscou passos outros, menos breves. Conseguiu. Sorriu com a mão cobrindo a boca, num jeito traquino, diria quem visse. E se pulasse? Coisa pouca, pulinho bobo. Será? Pulou. Pulinho bobo, mas pulou, diria quem passasse perto. Sorriu sem disfarces. Tossiu num gesto falso, por força do hábito, e deu por ausente a dor dos pulmões. Começou a dar por estranho cada fato. Achava tarde para ser credor de milagres, até porque nunca vira Deus com bons olhos, cria que o mundo era trabalho demais para um homem só. Vai saber! Pensou. Fato é que aquele domingo amanheceu brincalhão. Foi então que resolveu ousar. Agachou-se rápido, e quando percebeu já estava de pé. Um zap! Gargalhou. Num susto, mirou jardins alheios, mas, ninguém o vira no deslize de uma gargalhada. Decidiu voltar à cama, posto que tudo bem poderia ser sonho. E foi correndo, já que era festa. Outro susto: não era sonho. Gargalhou e deu pulos, era ali, naquela alcova esfumaçada, a verdadeira acepção da palavra felicidade. Dono supremo de toda ela. Já podia até morrer. Pensou. E correu até o guarda-roupas, sacou da última gaveta o abandonado traje de banho, tirou-lhe uma, duas traças, vestiu-se como em mil novecentos e trinta - pela agilidade -, e rumou à praia. Seguiu à direita no final da rua, e sorrindo sem máscaras contemplou o mar azul. Mergulhou e deixou saudades.

texto: m
foto: Alvaro Duarte

quarta-feira, 26 de março de 2008

Um momento


Enquanto o desejo aumenta e a razão reclama
Um flash de lembrança insiste no meu pensamento
Ah! De sorriso meigo e feição sincera
Quem dera te encontrar agora.

Mas, como explicar o que não disse;
Ou sentir saudades do que nunca tive ¿

Lá vem a razão de novo.

Cai fora!!!

Quero prosseguir sonhando
E notando o belo em cada movimento
O jardim, a rosa, o beija flor;
O céu, o sol e a sombra como conseqüência.

Quero planar sobre a humanidade.
Como os do Olimpo
Ignorando o medo, a morte, o tempo.
Navegando sempre sem saber do rumo
Como a nau que vaga em nevoeiro denso

Mas, há também tristeza que as vezes tenta
Em vão derrubar a força do meu sentimento

Então, flash!

Me pego num sorriso bobo a me lembrar d’agente.


poesia: Suelyton Melo
foto: Nuno Belo

"Talvez Deus queira que conheças muita gente errada antes de conhecer a pessoa certa para que, quando a conheças, saibas estar agradecido"
Gabriel García Márquez

terça-feira, 25 de março de 2008

Tinha que ensiná-la a pensar no amor como um estado de graça que não era meio para nada, e sim origem e fim em si mesmo.

trecho do livro Amor nos tempos do cólera de Gabriel García Márquez

a dança

baila a nuvem céu afora,
serpenteando algodão.
léu acima, mar abaixo,
saudades, sim e não.
eu falo, eu mudo,
eu me absurdo.
e segue a vida,
essa doce bandida
com seu sussurro,
essa ponta de faca
onde nunca erro o murro.
poesia: m

foto: José Marafona

segunda-feira, 24 de março de 2008

" Viver é desenhar sem borracha "
Millôr Fernandes

domingo, 23 de março de 2008

Revisão do tempo

Veja você que por aqui setembro já invadiu a sala, sorrateiro, impávido, alheio aos meus dissabores, e às noites em que me arrasto sob a luz dos que não sonham. Independente do lado que se olha da janela; tenho visto dias gêmeos, e os raros que fogem disso, diferem por intensidade maior de sentimentos menores. E no tatear de silêncios que sua falta me impõe, esqueço até que nada pára em nome do que fomos, nada.

Lá fora o chão de terra ainda sorve umas chuvas de agosto, a preparar secretamente o que vamos ver no explodir dos girassóis; sopra na velha palmeira que sombreava nossas tardes o mesmo velho vento que você dizia vir de Soweto; a roseira plantada a quatro mãos já cumpriu o seu primeiro outono de ausências; os vizinhos me olham como se não me vissem, e até os pardais, estes, não mais.

Ontem adormeci mirando o calendário, após me dar conta das luas que vieram sem você, e foram tantas. Ontem sonhei com a sua volta. Vinha feito sol e inundava o meu jardim aos primeiros ares da primavera, trazia marfins na boca, e a mesma alegria nos olhos de jade. Acordei sorrindo esta manhã, e ao perceber que era sonho; mero capítulo do meu romance sem leitores, saltei da cama para a vida.

Rasguei os mapas, nosso caderno de sonhos. Não fazia sentido prender vôos virgens na solidão de uma gaveta insólita. Também queimei as cartas, nosso rosário de mentiras, mas antes, reli por vezes o pergaminho dos enganos. E às canções que me ensinaste não darei mais ouvido. Apesar das dores, vou apagar as tatuagens assim, à unha. E com mais força, a cada instante que perceber que nada pára em nome do que fomos, nada; veja você...
Texto: m
foto: Raramago

quarta-feira, 19 de março de 2008



Foto: Rafa

Quem Sabe um Dia

Quem sabe um dia
Quem sabe um seremos
Quem sabe um viveremos
Quem sabe um morreremos!

Quem é que
Quem é macho
Quem é fêmea
Quem é humano, apenas!

Sabe amar
Sabe de mim e de si
Sabe de nós
Sabe ser um!

Um dia
Um mês
Um ano
Um(a) vida!

Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois

Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois
Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois

Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois.


Mário Quintana
foto: Artur Ferrão

terça-feira, 18 de março de 2008

Feliz cidade


Minha Marim, eu tô chegando!
e vou ficar pro carnaval,
rever o povo nas ladeiras,
a capoeira , o bacalhau

Brincar no Cavalo-marinho,
com a rabeca de Salu,
nos Afoxés e Caboclinhos
e vou sair de papangu

Quero embolar coco-de-roda,
rodar ciranda ao céu azul
minha Marim, eu tô de volta!
Vim pra sambar maracatu.

Vim pra sambar maracatuuuu!

Vim pra sambar! Ma ra ca tu


poesia: Suelyton Melo
foto: eu :)

segunda-feira, 17 de março de 2008

pró-cura



te procuro
quando
está claro,
quando escuro,
céu repleto
ou incompleto
te procuro,
no teu samba
predileto,
num obscuro
dialeto
te procuro,
quando
te protejo,
quando
me projeto
em teu futuro,
te procuro,
capto, capturo
nesse poema
que rasuro,
e te juro:
só quando
te encontro
me curo.



poema: m
foto: tânia flores.

A minha vontade é forte, mas a minha disposição de obedecer-lhe é fraca.

Drummond

domingo, 16 de março de 2008

Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!

Mário Quintana

flash-back de nós dois


E maio entrou sem fazer alarde, vindo me pegar sentado, ao lado de umas lembranças na minha varanda que dá pro céu. O tempo já nem me importa, se são horas disso, ou daquilo; se é de dormir, ou de comer. Agora mesmo, só sei que é tarde, e que esta já levantou, pedindo licença pra se retirar. Uma noite com cara triste já me espreita por trás do arrebol, naquele horizonte onde você desenhava bichinhos de algodão borrado. Chove esse maio por aqui, amor, e você, por onde anda? Sinto que vou carregar nas costas esses dois invernos, o de fora, que cabe a Deus controlar, e o de dentro – e mais pesado – que você instituiu ao fechar aquele portão sem dizer palavra. Lembra o girassol que você colheu olhando pra trás? É, guardei duas pétalas que sua distração deixou cair, dentro daquele Neruda que eu te lia nos dezembros quentes. E do nosso jardim florido, o que roubava olhares distraídos, lembra? Deste, pouco resta. Abandonei o doce hábito de cuidá-lo. E não de todo, mas em partes, posto que ainda cuido dos girassóis, como se fossem você. Mas, a maior graça ele perdeu, os olhares que não mais desperta. Ah, amor, nosso jardim... Até os beija-flores desistiram de nosso endereço, e me basta aguçar o olhar para vê-los em sobrevôos por jardins alheios. Não é para menos, pois até a alegria desistiu de mim, depois que você fechou aquele portão sem dizer palavra. Chove esse maio por aqui, amor, e você, por onde anda? E eu que já nem ando, pois que já abandonei as caminhadas à beira-mar, pra não mais doer nas lembranças: você catando conchinhas, eu rabiscando haicais na areia. E tantos foram meus abandonos, meu amor. Não menos foi o que guardei. Dormem no armário seu travesseiro de macela, e aquele pente de madeira que compramos no Nepal, porque ambos têm seu cheiro. E o que mais pude, guardei nos caminhos da mente, vizinhando com a saudade. É assim que me alimento, ligando esse flash-back de nós dois.


Por hora, mais não digo, por não me agradar falar ao papel, mais que aos seus ouvidos. E até posso dizer mais, se for pra falar dessa chuva insistente, dessas nuvens que de tão negras, já dizem ser noite, ou dum vagalume que acolá piscou um susto. Ou falar dessa tevê quebrada que fechou o meu mundo pra balanço; dos poemas que me faltam ler, fazer; das noites em que sou um, com mil de nós dois se amando mente adentro; do nosso cão que me olha triste quando me escuta pensar alto; enfim, daquele Porto ao meio que não mais bebi depois que você fechou aquele portão sem dizer palavra. E o que mais dizer, amor? Se chove tanto nesse maio, e você, por anda que não vem?



Texto de: m

foto: Raramago

sábado, 15 de março de 2008

A dor do não vivido


Definitivo, como tudo o que é simples. Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Por que sofremos por amor?

O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz.

Sofremos por quê?

Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados pela eternidade.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada. Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Como aliviar a dor do que não foi vivido?

A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e vivendo mais!!!

A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável; o sofrimento é opcional.


Carlos Drummond de Andrade
foto: Pedro Moreira

sexta-feira, 14 de março de 2008

A bunda, que engraçada






A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.


Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda
redunda.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

foto: Alipio Padilha



quinta-feira, 13 de março de 2008

canções de silêncio


cena um:


A cidade amanhece com o sol dos últimos dias de verão beijando o asfalto. Vestida de domingo, obedece quente e calma a sua rotina. Quem cruzou com o ônibus em que ele estava, fatalmente viu um rosto sonolento colado ao vidro empoeirado, e se perguntou no que ele estaria pensando àquele instante. Verdade é que o seu cérebro estava ainda no processo de assimilar as luzes daquela manhã, e nos seus tímpanos ainda retumbavam os sons das alfaias do Várzea, vestígios da noite. Na boca travada reverberava o agridoce sabor de conhaque, e o resto do corpo era só cansaço. Aqui, ali, num balançar do carro, sua cabeça se afastava do vidro e voltava com força para despertá-lo, fazendo aquele som característico. Desceu do ônibus cambaleante, passou a mão no rosto, esfregou os olhos, mas só acordou depois de tropeçar num desnível do passeio; quando descobriu que havia tomado a direção contrária ao local que estava indo.

cena dois:


O tom do despertador fica mais irritante aos domingos. Aquela voz ridícula gritando que “são nove horas, é hora de acordar!” consegue tocar o próprio íntimo dela, que salta da cama e segue até o banheiro, ou, ao espelho. Escorre os dedos no desalinho das mechas sobre a testa; abre bem os olhos. Sente a água fria tocar suas mãos, e as leva ao rosto. Lembra da noite passada. Pega o sabonete. O início da discussão. Desliza o sabonete no rosto. “Que babaquice, a dele!”. Retira dos olhos os resíduos de maquiagem. Ouve frases soltas. Molha o rosto. “Como foi pensar aquilo?...”. Mais água fria. Os gritos no carro. Prende o cabelo. Já não sabe mais o que é água no rosto molhado. Enjôo no estômago. Cozinha. De pé, encostada no balcão come algo que não lembraria o que foi ao meio-dia. Banheiro: abre o chuveiro, canta e chora.


cena três:


Os olhares se encontram ao abrir a porta do elevador. Ela descendo. Ele chegando. Sorrisos se armam, e se abraçam, trocam perguntas banais e elogios. Sorrisos vermelhos. Juntam-se ao resto do grupo, e cada um segue um rumo. Assuntos vão e vêm, a música toca sem ser ouvida, e como num carrossel, mais à frente volta a tocar para surdos. Fumaça de cigarro, cheiro de bebida, olhares furtivos, e sorrisos idem. Ela observa os gestos dele. Ele percebe os seus cabelos ondulando ao vento. Ela gosta do perfume dele. Agora já sentam lado a lado à mesa. E como o relógio não espera ninguém, já se fazia noite quando os dois dançaram uma música da qual não se lembram hoje, e lentamente tocaram-se os rostos, e a mão dela suada, fria, pareceu querer escorregar. E quando deram por si estavam abraçados, bailando sem sair do lugar ao som único do vento que balançava uma árvore.


cena quatro:


“vontade gêmea de ficar e não pensar em nada...” tocando baixinho no imaginário como trilha da cena que se vê agora. Os dois deitados no meio da noite em mudez combinada. Desejos meramente telepáticos, mas que as mãos têm liberdade de falar, como que num braile corpóreo; e assim o fazem. Um espectador atento no local diria ter visto esse balé de olhares e toques. Ele, como quem adora uma deusa, tocando mas sem tocá-la. Ela, como que diante de um templo sagrado, em seu respeito silencioso. Um toque de pés sinaliza permissão, é quando o rufar no peito acelera, e logo os olhos negam tudo. E o jogo de vontades reprimidas só aumenta, quando um olhar entende bem o que o outro diz, e o profanar mútuo chega as raias do abraço, e num extremo, tocam-se os lábios. Por fora tudo é silêncio, por dentro tambores rufando. Ela pensa na briga, no namorado. Ele pensa na língua que não se apresenta. Ela sabe que o tempo é senhor do porvir. Ele pensa que aquilo só pode ser sonho. Lábios colados. Línguas guardadas. Olhos abertos. Ele pergunta “boa noite?”, ela responde “é... boa noite...”


São 4:32h... lá fora um resquício de lua, no quarto mudez combinada, e “nada”.




baseado em fotos reais.

texto de: m
foto: Daniel Oliveira

m de mar

é de mirar

mirar mirar

até morrer

de admirar

teu olhar




m.